A polarização e o vazio na sociedade e nas artes tem a ver com conflitos psicológicos e sociais?
A resposta a essa pergunta resultou neste artigo que explora o potencial das artes para representar aspectos psicológicos e sociais.
Ao mesmo tempo, pretende mostrar como as representações artísticas podem oferecer um meio criativo e terapêutico para lidar com a atual situação de polarização e vazio, que atingem a sociedade nos âmbitos individual e coletivo.
Sem dúvida, vivemos neste início de século conflitos resultantes da polarização sociopolítica do mundo e os vazios existenciais da psique humana, que já estão se tornando fenômenos globais e coletivos.
Em geral, tais fenômenos são resultantes de fatos que geram situações conflitantes, tais como: guerras, extremismos, controvérsias, contradições etc.
No que diz respeito à área da psicologia, terapeutas e psicoterapeutas buscam entender o que se passa. Mesmo porque essas questões estão adentrando os consultórios atualmente.
Por conseguinte, os profissionais da saúde psíquica têm que encarar com cuidado tais questões. Seja como for, não podem abster-se de abordá-las.
Iniciar com imagens
Como arteterapeuta junguiana minha abordagem deve iniciar com imagens.
A princípio, a abordagem junguiana entende que todo acontecimento de natureza objetiva ou subjetiva reflete-se em uma imagem.
Além disso, o psicólogo C.G. Jung postulou que a dialética terapêutica pode ser eficaz através da produção e da observação de imagens.
Principalmente, a observação de pinturas abstratas e imprecisas, com vazios de significado, leva o espectador a voltar-se para dentro de si, numa dimensão íntima, buscando dar sentido à obra de arte.
Essa é a dimensão do inconsciente.
Diante disso, a Arte Moderna, que tende a ser mais abstrata, é a maneira ideal de acessar a dimensão do inconsciente pessoal e coletivo.
Efetivamente, a abstração nos estilos artísticos modernos não representa nada imediatamente reconhecível, causando uma sensação de estranheza.
Como consequência, instintivamente a mente busca correspondências internas para dar sentido ao que vê, dando vazão a emoções desconhecidas e/ou incômodas.
Entre os vazios e a polarização na sociedade e nas artes
Entre os artistas modernos (ao longo do século XX), Giorgio De Chirico foi um dos primeiros que buscou abstrair os incômodos e que melhor expressou visualmente os vazios e a polarização na sociedade e nas artes. Aliás, o seu estilo foi precursor do Surrealismo.
Segundo ele, “Uma obra de arte deve exprimir algo que não apareça na sua forma visível.”
Seu estilo, considerado metafísico, entende que todos os corpos e objetos têm tanto um aspecto visível como outro invisível e que devem ser representados para além da realidade imediata.
Na verdade, o seu estilo artístico se preocupou com a natureza subjetiva e a realidade psíquica do ser humano, que não é aparentemente revelada, alinhando-se à psicologia profunda de CG Jung.
Exatamente, por causa desse estilo abstrato, o público em geral tende a ver as obras de arte moderna com reações de estranheza ou repulsa.
Porém, vale a pena resistir a essas reações e ousar observar.
Observando uma obra de arte
Observar uma obra de arte é a melhor maneira de refletir sobre as experiências e delas abstrair o seu significado.
Agora convido você a observar uma obra de arte de De Chirico.
Inicialmente, vamos observar, ou melhor, vamos mera e simplesmente contemplar a obra. Por isso, não tente compreendê-la. Apenas dê atenção às emoções que provoca.
Depois de sentir as emoções através da imagem, proponho a uma reflexão através de perguntas, como por exemplo:
Quais elementos lhe chamam mais atenção nessa pintura?
Que emoções esses elementos provocam em você?
Você acha possível associar as imagens com ideias tais como: ‘vazio’ e ‘polarização’?
Para que serve esse cenário imaginado e produzido pelo artista, na sua opinião?
Através dos elementos visíveis da imagem, podemos imaginar o que estaria invisível?
Análise objetiva
Após refletir sobre suas impressões subjetivas a partir da sua observação da pintura de De Chirico, podemos seguir para uma análise mais objetiva.
Com efeito, podemos recorrer a um exercício de descrição.
Especialmente, o que vemos nesta paisagem é uma praça deserta ocupada apenas por uma estátua, que representa Ariadne, uma personagem da mitologia grega.
Ao fundo, há um trem (quase invisível), atrás de uma parede de tijolos e duas palmeiras.
Vê-se um arco à frente.
O céu noturno torna a cena cheia de longas sombras, contrastes nítidos entre claro e escuro.
Tradicionalmente, a interpretação artística suscita questionamentos inquietantes.
Como por exemplo, sobre:
- o porquê de a estátua estar isolada;
- a função dos espaços vazios; e
- o significado do contraste entre luz e sombra.
Pensar por imagens
Conforme aponta De Chirico, “pensar por imagens” é a base da reflexão artística para interpretar o mundo com os sentidos e a indagação.
Nas suas obras há cidades esvaziadas, premonitórias de uma época de ameaça de aniquilação do ser humano, que recorreu a valores mecanicistas, como meio de se defender.
Uma vez que o artista viveu grande parte do século XX, é natural que as suas imagens retratem um mundo em transição e cheio de incertezas, que se reflete em uma atmosfera suspensa, estranha e inexplicável, deixando uma sensação de suspensão, como se algo novo pudesse acontecer.
Aliás, ele vivenciou duas grandes guerras mundiais, cujo pavor latente se estendeu até durante a Guerra Fria, que dividiu o mundo em duas polaridades distintas e rivais.
Assim, a obra de De Chirico denuncia uma falta de sentido, devido à marcada polarização e incongruência das figuras em paisagens, contrastando luzes e sombras.
Sobretudo, a obra de De Chirico retrata a sociedade do seu tempo, atormentada pela incerteza, quando não se encontrava a paz, como um centro de gravidade.
Alguma semelhança com o mundo de hoje?
As semelhanças entre a época de Giorgio De Chirico e o mundo de hoje se mostram pelas notícias de guerras e rivalidades políticas, por exemplo.
Atualmente, a realidade da sociedade coincide em vários pontos com a sociedade de De Chirico, sendo que o sentimento que as suas obras suscitam podem corresponder com os sentimentos de muitas pessoas.
Sem dúvida, as incertezas, as controvérsias e as inversões de valores da sociedade atingem o dia a dia das pessoas, nas suas intimidades.
Consequentemente, vínculos de família e de amizades podem se fragilizar, devido a sentimentos e opiniões contrárias. Tão marcantes são as controvérsias que geram muitos ressentimentos, os quais os pacientes trazem aos consultórios, buscando suporte emocional.
Depoimentos
Podemos encontrar depoimentos* que demonstram a polarização de opiniões, e o consequente vazio existencial presentes hoje na nossa sociedade.
Como por exemplo, depoimentos de especialistas como os de:
Margaret Eastman Smith, professora no programa de Paz Internacional e Resolução de Conflitos na American University’s School of International Service em Washington, D.C.:
“Estamos imersos em uma aceleração da mudança, onde as suposições sobre o passado que costumavam tornar a vida razoavelmente previsível estão caindo por terra”; “A discussão do “extremismo” destaca o vácuo de conteúdo moral que estamos apresentando para a próxima geração.”
E do cientista político português, Manuel Villaverde Cabral, em sua coluna no jornal Observador, falando sobre o Brasil:
“O país está rigorosamente dividido ao meio e não é de presumir que os próximos tempos sejam pacíficos… embora sem «guerra civil»”
Ou como é o caso de um comentário de outra jornalista e cientista política, Diana Soller:
“(…) numa era de polarização social generalizada um pouco por todo o mundo, a melhor solução é a tentativa de encontrar consensos, antes que seja tarde demais.”; “Transições abruptas acabam, regra geral, em tragédias e, muito frequentemente, em regimes mais autoritários que os anteriores.”; “Tudo [sic] este cenário acontece num vazio de poder. ”
Mais especificamente, brasileiros, como o professor Rafael Parente, sentem que o problema se baseia em ódio e mentiras:
“Ficou mais difícil conversar. Muito da polarização é baseado em mentira e ódio, mas, ao mesmo tempo, o acirramento criou uma força contrária ao radicalismo, de relembrar que a diversidade brasileira é uma das nossas forças e que crescemos na diversidade e com a verdade.”
Tais depoimentos revelam como as pessoas estão sendo afetadas pela crise da polarização, cuja consequência recai sobre o vazio. Por causa da inacessibilidade de encontrar um eixo de equilíbrio, ou pela exasperada nostalgia de valores passados e a má adaptação a novos valores surge então uma lacuna.
É uma espécie de vácuo entre pessoas, ideias e visões de mundo totalmente diferentes e contrastantes.
*Os depoimentos aqui relatados não têm a intenção de demonstrar vieses políticos, tampouco expressar opiniões pessoais da autora deste artigo.
Meios de encontrar equilíbrio e suporte
Há vários meios de encontrar equilíbrio e suporte para viver cenários e tempos controversos.
Tal como afirma Margaret: “O “inimigo” é a falta de imaginação…”
Para além do trocadilho, as imagens da imaginação oferecem meios e suporte para preencher o vazio existencial e equilibrar os efeitos da polarização na sociedade, através das artes.
Então, como você sente os efeitos dessa atual crise de polarização de opiniões e preferências políticas?
Se isso está abalando seu equilíbrio emocional, ou sente dificuldade em encontrar um ponto de equilíbrio e tropeça no vazio, lhe proponho buscar uma solução criativa.
Olhar fora da caixa
Que tal ‘olhar fora da caixa’, tentando transcender a realidade imediata?
Por intermédio das obras dos artistas, que possivelmente já passaram por dificuldades semelhantes e deixaram o legado das suas experiências em imagens e pinturas, podemos encontrar meios de ‘desabafar’ sentimentos controversos.
A propósito, tais sentimentos são tão complexos que não se consegue verbalizar. Em razão disso, a sua expressão só pode se dar através das artes.
Há muitos artistas modernos, cujas obras expressam criativamente sentimentos controversos.
Apesar da diferença de estilos entre eles, todas as obras pertencem às escolas do século XX, em especial ao Surrealismo ao Expressionismo.
Um exercício arteterapêutico
Sugiro-lhe um exercício arteterapêutico com essas obras de arte, elencadas abaixo.
A intenção deste exercício é de promover uma aproximação com sentimentos indesejáveis de forma criativa, para conseguir transformá-los em imagens significativas.
Para começar, escolha dois ou mais artistas a partir da lista abaixo:
- Giorgio De Chirico
- William Balthazar Rose
- Paul Klee
- René Magritte
- Leonora Carrington
- Frida Kahlo
- Salvador Dalí
- Joan Miró
- Pablo Picasso
- Max Ernst
- Wassily Kandinsky
- Edvard Munch
- Lasar Segall
- Tarsila do Amaral
- Candido Portinari
- David Lynch
Para cada artista escolhido, você escolherá uma pintura.
Basta clicar no link com o nome do artista para abrir uma janela com suas pinturas mais importantes.
Procure escolher a pintura pelas imagens, e, se possível, não dê atenção ao título da obra.
Pois, observar uma obra de arte é um exercício de reorganização criativa da mente e da psique, cuja via é simbólica e não racional.
Se você se deixar influenciar pelo título para escolher uma pintura, acionará o raciocínio analítico, que anula os efeitos da contemplação.
Dessa forma, uma maneira de escapar do racional é fazer uma escolha intuitiva e aleatória, sem critérios de escolha.
Captar e registrar
Depois de escolher as pinturas, tente captar e registrar as reações que surgem em você, tais como medo, repulsa, compaixão, tristeza, alegria etc.
Tome nota ou grave as suas impressões.
Em seguida, busque nas imagens aqueles aspectos incômodos e tome nota das suas impressões.
Ao final, dê continuidade à atividade, fazendo um desenho seu para representar as emoções e impressões que as obras lhe provocaram.
Alternativamente, em vez de desenhar, você pode fazer uma atividade de colagem a partir de figuras ou fotos. Essa colagem pode ser feita fisicamente ou digitalmente.
Momento de reflexão
Após terminar a sua produção do desenho ou da colagem segue-se um momento de reflexão.
Faça uma pausa para refletir sobre o que as imagens significam para você, tentando relacioná-las consigo.
Por exemplo, você pode responder a uma pergunta sobre como você pode se relaciona com um determinado conflito e quais os aspectos construtivos que podem lhe ajudar a enfrentá-lo.
Tudo o que lhe vier à cabeça é válido: sentimentos, lembranças, ideias etc.
Acima de tudo, deixe fluir as suas impressões e lembre-se de que as imagens falam sobre as suas potencialidades. Portanto, aproprie-se delas. Principalmente, aquelas potencialidades menos reconhecidas por você, mas eficazes e eloquentes para dar sentido ao seu momento.
Se puder mantenha a sua produção (desenho ou colagem) à vista, para que você possa estar em contato visual com ela nos dias sucessivos.
Consequentemente, com o passar do tempo as imagens produzidas por você continuarão lhe trazendo novos e inesperados insights e, até mesmo, eventos sincrônicos!
Tenha em mente que todas as etapas acima, desde a contemplação das pinturas até a sua produção criativa final e reflexão, podem ser feitas em momentos diferentes, com pausas entre as etapas.
Aliás, podem ser feitas até em diferentes dias. Essas pausas podem ser importantes para deixar que as imagens se assentem na sua mente e novos insights possam surgir.
Espero que estas sugestões arteterapêuticas lhe sejam úteis.
Quanto melhor conseguirmos superar nossas crises pessoais, melhor ficará a sociedade e mais saudável ficará a psique coletiva.
Em vista disso, o importante não é buscar fazer desaparecer os problemas de vazio existencial e de polarizações tóxicas, mas sim transcendê-los.
Por meio da arte e da expressão criativa isso pode ser possível!
”Pois a possibilidade de criar uma nova imagem palpável para representar algo intangível favorece a estruturação a expansão da consciência.”
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